As partes, a causa de pedir e as provas na Lei Anticorrupção

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A Lei  12.846/2013, também denominada de Lei Anticorrupção, dispõe a respeito da responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira. Ao lado de outros dispositivos contidos no Código Penal, na Lei de Ação Popular (4.717/65), na Lei de Licitações (8.666/93) e na Lei de Improbidade Administrativa (8.429/92), por exemplo, os dispositivos da Lei Anticorrupção compõem um microssistema normativo voltado à tutela da administração pública, de seu patrimônio e dos princípios que a informam. O debate em torno do reconhecimento da pessoa jurídica como centro de imputação de responsabilidade não é estranho ao direito. Uma das ciências jurídicas que mais tem se dedicado ao estudo desse tema nos últimos anos é o Direito Penal. Um grupo cria um ambiente, que pode facilitar ou mesmo incitar os autores materiais a cometer crimes em seu benefício. Daí surge a ideia e a necessidade de aplicar sanções não apenas em relação a estes autores, mas também a todo grupo.[1] Após a revolução industrial, os entes coletivos estão, pouco a pouco, sendo tratados da mesma maneira que as pessoas físicas, podendo, por exemplo, possuir bens, ter direitos, contrair dívidas e obrigações, independentemente dos indivíduos que a compõem.[2] As formas de responsabilização das pessoas jurídicas até então existentes no ordenamento jurídico brasileiro não se mostraram, contudo, suficientes para conter as práticas cotidianas de malversação de bens públicos praticada por algumas delas. Daí o porquê da conveniência da edição desse novo diploma legislativo.

A mera previsão de novos dispositivos legais, embora tenham eles o respaldo da opinião pública, como ocorre com a Lei Anticorrupção, não assegura, contudo, como se sabe, que sejam eles efetivos. Por isso, a necessidade de se refletir a respeito da adequação da técnica processual disponível a sua concretização. O imperativo de adequação da técnica processual às necessidades exigidas pelo direito material que se pretende tutelar evita uma distorção a que o processo, enquanto instrumento de manifestação de poder, não pode se prestar: o descompasso entre o direito material e o processo leva a uma indesejada prevalência deste sobre aquele.[3] Este, portanto, é justamente o propósito deste ensaio: refletir a respeito da adequação do processo administrativo e judicial que conduz à imposição das sanções previstas na Lei 12.846/2013, e ao fim analisar as possíveis relações entre as demandas cujos fundamentos sejam essas diversas leis que visam à tutela da administração pública.

A Lei 12.846/2013 contém 31 artigos dispostos em sete capítulos. Foi regulamentada pelo Decreto 8.420, de 18 de março de 2015, que melhor específica os acordos de leniência e o valor e dosimetria das multas às empresas.

Partes
O primeiro deles (artigos 1º a 4º) dispõe a respeito dos sujeitos de direito que podem ser sancionados caso incorram em alguma das condutas típicas previstas no artigo 5º dessa lei. O artigo 1º, parágrafo único, da Lei  12.846/2013, estabelece que ela é aplicável às “sociedades empresárias e às sociedades simples, personificadas ou não, independentemente da forma de organização ou modelo societário adotado, bem como a quaisquer fundações, associações de entidades ou pessoas, ou sociedades estrangeiras, que tenham sede, filial ou representação no território brasileiro, constituídas de fato ou de direito, ainda que temporariamente”. A legitimidade dessas pessoas jurídicas para figurarem no polo passivo de eventual demanda com fundamento na Lei Anticorrupção, de acordo com o artigo 4º, dessa lei, persiste ainda que ocorra qualquer alteração contratual, transformação, incorporação, fusão ou cisão societária.[4] Evita-se, com isso, qualquer tentativa de manobra que configure uma fuga de responsabilidade. Além disso, dado o regime diferenciado de responsabilização das pessoas físicas e jurídicas, o artigo 3º, da Lei  12.846/2013, deixa claro que a aplicação da Lei Anticorrupção às pessoas jurídicas não exclui a responsabilidade individual de seus dirigentes ou administradores.[5] Por certo, nesses casos a responsabilidade desses sujeitos se submete a um regime jurídico diverso (responsabilidade subjetiva) em que é apurada a culpabilidade dos envolvidos.

Causa de pedir
O artigo 5º, como visto, estabelece as condutas típicas que ensejam a aplicação das sanções previstas na Lei  12.846/2013. De acordo com tal dispositivo, constituem atos lesivos à administração pública: “(inc. I) prometer, oferecer ou dar, direta ou indiretamente, vantagem indevida a agente público, ou a terceira pessoa a ele relacionada; (inc. II) comprovadamente, financiar, custear, patrocinar ou de qualquer modo subvencionar a prática dos atos ilícitos previstos nesta Lei; (inc. III) comprovadamente, utilizar-se de interposta pessoa física ou jurídica para ocultar ou dissimular seus reais interesses ou a identidade dos beneficiários dos atos praticados; (inc. IV) no tocante a licitações e contratos: a) frustrar ou fraudar, mediante ajuste, combinação ou qualquer outro expediente, o caráter competitivo de procedimento licitatório público; b) impedir, perturbar ou fraudar a realização de qualquer ato de procedimento licitatório público; c) afastar ou procurar afastar licitante, por meio de fraude ou oferecimento de vantagem de qualquer tipo; d) fraudar licitação pública ou contrato dela decorrente; e) criar, de modo fraudulento ou irregular, pessoa jurídica para participar de licitação pública ou celebrar contrato administrativo; f) obter vantagem ou benefício indevido, de modo fraudulento, de modificações ou prorrogações de contratos celebrados com a administração pública, sem autorização em lei, no ato convocatório da licitação pública ou nos respectivos instrumentos contratuais; ou g) manipular ou fraudar o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos celebrados com a administração pública; (inc. V) dificultar atividade de investigação ou fiscalização de órgãos, entidades ou agentes públicos, ou intervir em sua atuação, inclusive no âmbito das agências reguladoras e dos órgãos de fiscalização do sistema financeiro nacional”. Tais fatos serão considerados ilícitos ainda que praticados em benefício de terceiro (art. 2º),[6] portanto, as pessoas jurídicas que figurarem como rés em ação civil pública com fundamento na Lei Anticorrupção não podem alegar como fato impeditivo ao exercício do ius puniendi estatal, eventual ausência de benefício próprio auferido com tal prática.

Esses são, logo, os fatos que constituem causa de pedir remota de eventual ação civil pública fundada nessa lei. Incumbe, assim, àqueles que possuem legitimidade ativa o ônus de demonstrar a existência desses fatos a fim de ensejar a aplicação das sanções legais. A importância do correto direcionamento da atividade probatória assume uma importância vital para o correto resultado do processo quando este tem caráter prevalentemente sancionatório, como é exatamente o caso da Lei Anticorrupção. Quando se pensa em verdade real, a declaração dos fatos feita pelo juiz assume uma condição fundamental e necessária para a consecução da Justiça, mas talacertamento pressupõe, evidentemente (e em todos os casos!), a correta interpretação da norma e, portanto, o respeito ao princípio da legalidade. É certo que a verdade real é impossível de se chegar no processo, porque ele, na essência, repete fatos já ocorridos. É sempre, nesse quadro, uma verossimilhança da realidade. No entanto, a declaração absoluta da verdade ou busca da verdade real é um ideal de referência, que se mostra muito forte no processo penal e também nos processos sancionatórios preordenados à imposição de sanções restritivas de direitos consagrados na Constituição Federal (liberdade, tratamento paritário, capacidade eleitoral passiva etc.). A base constitucional de um processo é às vezes esquecida ou deixada de lado em determinados momentos do arco procedimental, quando na verdade, é ela a matriz para que o processo se desenvolva e chegue aos resultados objetivados pela ordem jurídica.

Embora seja dispensada a presença do elemento volitivo para configuração ilícito (“Art. 2. As pessoas jurídicas serão responsabilizadas objetivamente…”), a prova dos atos tidos por irregulares deve ser clara e convincente. Daí a real importância de um bom processo, previamente idealizado, a servir de modelo ou parâmetro para a declaração ou reconhecimento da verdade dos fatos.

Na lei em exame isso se mostra muito forte. Tanto é assim que consta do artigo 5º, incisos II e III, uma expressão (“comprovadamente”) que só faz reforçar a necessidade de que as provas da prática do ilícito levem a uma conclusão acima de qualquer dúvida razoável. O standard probatório exigido para eventual condenação com fundamento na Lei 12.846/2013, portanto, dada a natureza das suas sanções, claramente restritivas de direitos, deve ser mais rigoroso se comparado ao das ações cíveis de natureza meramente ressarcitória. As ações civis públicas que tiverem por fundamento a Lei Anticorrupção devem ser tratadas a partir de uma perspectiva maior, pois voltadas à preservação da moralidade pública à custa da imposição de severas sanções independentemente de qualquer juízo valorativo a respeito do elemento volitivo dos agentes. Quanto maior a sanha punitiva do legislador, maior é a possibilidade de serem cometidas arbitrariedades e, portanto, maior é a preocupação do jurista/aplicador do direito com os apenados e com a observância do devido processo legal. O contraditório, fenômeno estrutural do processo, deve ser uma garantia a ser observada sempre, especialmente na instrução, que depende muito nos processos sancionatórios, como o são aqueles instituídos pela Lei Anticorrupção, da observância do binômio alegação-prova[7]. Quando os poderes representativos se voltam contra uma determinada minoria é ao Poder Judiciário a quem elas devem recorrer para fazer valer o seu direito e as garantias constitucionais que lhes são asseguradas.

As penas impostas para os casos de descumprimento da Lei Anticorrupção, como melhor demonstrado no item seguinte, não se limitam a ressarcir os prejuízos causados aos cofres públicos, mas constituem verdadeira manifestação do ius puniendi estatal. Por esse motivo, aqueles que estão sujeitos a ela merecem o mesmo tratamento dispensado aos que violam os dispositivos penais. A natureza punitiva das sanções impõe, portanto, à ação civil pública fundada na Lei Anticorrupção um regime jurídico processual próprio, próximo ao das ações penais. Ainda que se considere que referida ação não tenha natureza penal, é certo que ela constitui uma manifestação inequívoca do poder punitivo do Estado, inserindo-se, portanto, no quadro geral do chamado Direito Administrativo Sancionador,[8] o que impõe a observância de uma série de garantias que, embora tradicionalmente ligadas ao direito material e processual penais, compõem um núcleo comum, de status constitucional, que sempre deve se manifestar diante do exercício do ius puniendi estatal. Pode-se dizer, portanto, que existe no campo do Direito Administrativo Sancionador uma inevitável “atração (…) de princípios típicos do processo penal”,[9] assumindo essas demandas um “caráter acentuadamente penal”.[10] Essa aproximação é verificada também no direito comparado. O Tribunal Constitucional da Espanha, por exemplo, ressalta que “os princípios inspiradores da ordem penal são de aplicação, com certos matizes, ao Direito sancionador, dado que ambos são manifestação do ordenamento punitivo do Estado”.[11] Seja como for, o certo é que devem ser observadas as seguintes normas estruturantes na aplicação das sanções dessa natureza: tipicidade da conduta punível, grau de convencimento do julgador superior àquele típico das ações cíveis,[12] e individualização das sanções aplicadas. Além disso, não há demasia em se ressaltar que a aplicação de qualquer sanção em virtude de descumprimento da Lei Anticorrupção deve ser precedida do devido processo legal (processual e substancial) e dos seus consectários lógicos, tais como o direito fundamental ao exercício do contraditório e à prova, por expressa previsão constitucional (CF, artigo 5˚, LIV).[13] Assim, diante da natureza essencialmente punitiva de referida ação civil pública, esta deve ser compreendida à luz do regime jurídico do Direito Administrativo Sancionador, que guarda um núcleo comum com as normas estruturantes do direito penal e processual penal, impondo a observância, pelo ius puniendi estatal, da tipicidade das condutas, do standard probatório além da dúvida razoável, bem como da sua respectiva individualização das sanções.

O amplo rol de legitimados passivos, aliado ao fato de que algumas das hipóteses previstas no artigo 5º, da Lei 12.846/2013, também constam de outros diplomas legais, impõe que seja analisada a relação dessa lei com as demais leis voltadas à tutela da administração pública. Antes disso, porém, analisa-se no item seguinte os procedimentos e as sanções aplicáveis tanto no âmbito administrativo quanto judicial.


([1]). V., em sentido semelhante, Klaus Tiedemann, “Responsabilidad penal de personas jurídicas y empresas en derecho comparado”, inRevista Brasileira de Ciências Criminais, n. 11, p. 22.

([2]) V. Fausto Martin de Sanctis, Responsabilidade penal da pessoa jurídica, São Paulo, Saraiva, 1999, pp. 1-3. E ainda: “a história recente da responsabilidade penal da pessoa jurídica é marcada por um movimento internacional para responsabilização dos entes coletivos em diversas esferas. Nos principais congressos internacionais realizados neste século o assunto é inevitavelmente discutido sob vários aspectos (criminalidade econômica, ecológica, crimes contra o consumidor etc.), quase sempre chegando-se a conclusões tendentes a admitir a responsabilização dos entes coletivos. Esta tendência fortaleceu-se depois da primeira guerra mundial por duas razões: o Estado passou a ser mais intervencionista, regulando a produção e distribuição de produtos e serviços e prevendo punições mais graves para as violações a essas determinações; as empresas passaram a ser, em face do seu poderio resultante da formação de grandes oligopólios, as principais violadoras das determinações estatais.” (Sérgio Salomão Shecaira, Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica, 3ª. ed., São Paulo: Campus, 2011, p. 21).

([3]). Ver: Andrea Proto Pisani, “I rapporti fra diritto sostanziale e processo”, in Le tutele giurisdizionali dei diritti, Napoli, Jovene, nn. 1-4, pp. 2-8.

([4]). in verbis: “Art. 4. Subsiste a responsabilidade da pessoa jurídica na hipótese de alteração contratual, transformação, incorporação, fusão ou cisão societária. §1. Nas hipóteses de fusão e incorporação, a responsabilidade da sucessora será restrita à obrigação de pagamento de multa e reparação integral do dano causado, até o limite do patrimônio transferido, não lhe sendo aplicáveis as demais sanções previstas nesta Lei decorrentes de atos e fatos ocorridos antes da data da fusão ou incorporação, exceto no caso de simulação ou evidente intuito de fraude, devidamente comprovados. §2. As sociedades controladoras, controladas, coligadas ou, no âmbito do respectivo contrato, as consorciadas serão solidariamente responsáveis pela prática dos atos previstos nesta Lei, restringindo-se tal responsabilidade à obrigação de pagamento de multa e reparação integral do dano causado”.

([5]). in verbis: “Art. 3o A responsabilização da pessoa jurídica não exclui a responsabilidade individual de seus dirigentes ou administradores ou de qualquer pessoa natural, autora, coautora ou partícipe do ato ilícito. §1o A pessoa jurídica será responsabilizada independentemente da responsabilização individual das pessoas naturais referidas no caput. §2oOs dirigentes ou administradores somente serão responsabilizados por atos ilícitos na medida da sua culpabilidade”.

([6]). in verbis: “Art. 2o. As pessoas jurídicas serão responsabilizadas objetivamente, nos âmbitos administrativo e civil, pelos atos lesivos previstos nesta Lei praticados em seu interesse ou benefício, exclusivo ou não”.

([7]). É de Joaquim Canuto Mendes de Almeida: “instruir é alegar e provar. Tanto a instrução definitiva quanto a instrução preliminar consistem nisso mesmo: alegações e provas. Se a instrução preparatória não escapa, pois, à regra porque é uma antecipação da instrução definitiva, a instrução preventiva é alegar e provar quanto baste para prevenir a justiça contra acusações infundadas” (Princípios fundamentais do processo penal, São Paulo, RT, 1973, n. 108, p. 115).

([8]) Ver: Fábio Medina Osório, Direito Administrativo Sancionador, 3. ed., São Paulo: RT, 2009, passim, que refere especificamente a ação de improbidade como exemplo típico de medida administrativa sancionadora (n. 2.1.2.1, p. 82).

([9]) Ver: Teori Albino Zavascki, Processo Coletivo, 2. ed., São Paulo: RT, 2007, n. 5.6, p. 118 (em relação ao processo de improbidade).

([10]) “Na seara dos processos administrativos pertinentes à aplicação de sanções, não deve o agente decisório deixar de levar em consideração a rica trama principiológica do direito penal” (Sérgio Ferraz e Adilson de Abreu Dallari, Processo administrativo, 2. ed., São Paulo: Malheiros, 2007, n. 3.1.7,  p. 195).V., ainda, Danilo Knijnik, A Prova nos Juízos Cível, Penal e Tributário, Rio de Janeiro: Forense, n. 4.3.2, p. 167.

([11]) Ver: Eduardo García de Enterría e Tomas-Ramon Fernandez, Curso de Derecho Administrativo, Madrid: Civitas, vol. II, cap. XVIII, p. 168-169. Os autores voltam a tratar especificamente da aplicação dos princípios ao processo sancionador nas pp. 184 e ss. do volume. V., também, dos mesmos autores:Las sanciones administrativas, Madrid: Civitas, 1983.

([12]) Ver: Danilo Knijnik, A prova nos juízos cível, penal e tributário. Rio de Janeiro: Forense, 2007.

([13]) Ver: Paulo Henrique dos Santos Lucon, “Devido processo legal substancial”, in www.direitoprocessual.org.br, site oficial do Instituto Brasileiro de Direito Processual (estudo apresentado nas IV Jornadas de Direito Processual Civil, no dia 8 de agosto de 2001) e in Revista Iberoamericana de Derecho Procesal, Buenos Aires, vol. II, 2002. Atualizado e publicado in Leituras complementares de processo, 3ª ed., Salvador, Ius Podium, 2005 (coord. Fredie Didier).

Paulo Henrique dos Santos Lucon é sócio do Lucon Advogados, professor Doutor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Vice-Presidente do Instituto dos Advogados de São Paulo. Vice-Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Processual. Integrou a Comissão Especial do Novo CPC na Câmara dos Deputados.


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